quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Natal 7 - Anjos de Natal


Anjos de Natal

20 de dezembro de 2009 | 0h 00
Ronaldo Correia de Brito (*) - O Estadao de S.Paulo
Em novembro, pela nossa casa do sertão passavam os mascates com malas de quinquilharias: caixas mágicas cheias de belezas coloridas, interditadas aos rapazes. Eu olhava de longe os fetiches femininos, deslumbrado com espelhos, fitas, bicos, rendas, batons, ruges, travessas de cabelo, diademas, pulseiras, anéis, perfumes em vidrinhos minúsculos, cortes de tecidos finos, agulhas, linhas e bordados. As mulheres gastavam o dinheiro economizado em um ano, nos adornos que realçavam suas belezas agrestes. Dois meses de trabalheira fabricando queijo se transformavam num anelzinho de ouro catorze, com pedrinha de rubi falso, engendrado por ourives de Juazeiro do Norte. Na Noite de Festas, mesmo que não saíssem de casa, ostentavam um mimo dourado, pendente das orelhas ou brilhando no dedo anular. E os maridos, austeros como as pedras, deleitavam-se com o aroma adocicado de um perfume francês, no corpo de esposas que normalmente cheiravam a vacas e cabras.
Em dezembro começavam as chuvas. De um dia ao outro o mundo se tornava verde. O calor diminuía e as formigas de asas abandonavam os formigueiros em voos nupciais, cobrindo a cidade de ultraleves e pó de asas que o vento carregava nos redemoinhos, atravessando frestas de portas e janelas. Não se lustrava os móveis com óleo de peroba, porque as asas das formigas, soltas e esvoaçantes, grudavam em tampos de mesa, aparadores, armários, dando trabalho em removê-las. Dezembro era um mês de grandes trovoadas. Abriam-se as sementes das barrigudas e ciumeiras. Nuvens de lã branco-opalescente caíam do alto sobre nosso mundo, levando-nos a imaginar a neve e o Natal, uma festa que sempre me pareceu alada, repleta de anjos, borboletas, beija-flores, formigas voadoras e muitos presentes, dádivas e ofertórios.
Minha avó paterna, Maria de Caldas, batia sessenta ovos numa grande tigela de barro, para os pães-de-ló. A velha receita portuguesa adaptava-se aos ingredientes da região: em vez de farinha de trigo, ainda chamada farinha do reino, a goma de mandioca. O vinho do Porto não passava nem de longe pelo nosso bolo. Essa iguaria fina se reservava à consagração do sangue de Cristo, nas missas de domingo e dias santificados. Dona Maria de Caldas arrumava os pães-de-ló de goma numa mesa coberta por toalha de linho, bordada em crivo e pontos cheios. Num vestido especialmente costurado para a Noite de Festa, o cabelo penteado e preso, esperava os afilhados, que chegavam sempre à boca da noite. Eles pediam a bênção e recebiam um presente modesto, quase sempre sabonetes embrulhados em papel de seda ou dinheiro dentro de um envelope. Comiam pão-de-ló, bebiam aluá de abacaxi, sentavam, conversavam. Os bolos de goma de Maria de Caldas eram dádivas ao Menino Deus.
Dona Dália Nunes de Brito, minha avó materna, nunca se esmerou na arte culinária. Seu mimo de Natal para os netos consistia num pequeno presépio cujas figuras eram confeccionadas por ela mesma com a lã do arbusto ciumeira, ou da árvore barriguda, que parece algodão, sendo mais macia e dourada. O pouco tempo livre de que ela dispunha, entre os trabalhos e as rezas, ocupava naquele artesanato minucioso, dando vida a carneiros, bois, burrinhos, camelos, anjos e pastores. A leveza da pluma emprestava às figuras uma natureza celestial e etérea. Eu sonhava que os bichinhos fugiam pela chaminé escura da casa da avó para uma festa no céu, na noite de Natal.
Minha avó possuía um Jesus Cristinho de madeira, corado e risonho, vestido numa camisa de seda, que fora esculpido lá longe em Portugal e recebido de presente da nossa tia-avó Nizinha. Debaixo do vestidinho rendado, lá entre as coxas, ele tinha os mesmos dons de qualquer menino homem. Nossa tia Alzeni achava os genitais uma profanação e ameaçava castrar o Deus Menino, livrando-o de sua sexualidade. Sempre que passávamos diante da lapinha, levantávamos a saia e olhávamos o sexo do Menino, comparando-o ao nosso. Era difícil imaginar que a inocente criatura deitada nas palhas da manjedoura se tornaria o Senhor Crucificado, suspenso na parede da sala e vigiando-nos com olhos bondosos.
Mais bonita do que a lapinha de nossa avó Dália, só mesmo a das três irmãs do alfaiate Zé de Rita, solteironas famosas no Crato. O ano se tornava pequeno, sem tempo suficiente para elas construírem a cidade cenário que ocupava a sala principal da casa onde moravam. Havia de tudo naquele universo miraculoso: uma Jerusalém em miniatura, montanhas, lagos com cisnes e peixes, exército de soldados romanos, vilas, cercados, animais domésticos e selvagens, florestas, campos, pastores e pastoras, sol, lua, estrelas e cometas, anjos e santos. Toda essa representação do mundo se distribuía em três planos: o superior divino; o intermediário angelical; o terreal humano. Era impossível imaginar-se alguma coisa que não estivesse ali. Certa vez, cheguei a avistar uma Marilyn Monroe seminua, pendurada no galho de uma árvore. No primeiro dia de dezembro, as irmãs inauguravam a lapinha mirabolante. Exaustas pelo excesso de trabalho, sentavam em cadeiras e se divertiam com os rostos assombrados dos visitantes. Sempre imaginei que o único motivo de suas existências era encantar as pessoas com esse presente de Natal.
O cinema trouxe para o Crato o glamour hollywoodiano e a fantasia de natais com neve e pinheiros. As lapinhas perderam o prestígio, como o próprio catolicismo. O cineasta Fellini anunciou o fim da mitologia cristã e as três irmãs do alfaiate envelheceram. Num mês de dezembro em que milhões de formigas de asas sobrevoaram a cidade e uma chuva de lã de barriguda cobriu os telhados, elas não abriram as portas de casa. Pouco tempo depois morreram, uma após outra. Devem ter subido para o céu na companhia de anjos, querubins e serafins, os mesmos que habitavam seus presépios no plano intermediário angelical.
***
Num dia 24 de dezembro de qualquer ano desses - o que é o tempo, senão uma medida arbitrária? -, eu entrava na unidade de terapia intensiva do hospital onde trabalho, quando reparei numa paciente tocando a campainha de acesso. Pálida, as pernas inchadas, ela vestia uma bata hospitalar e carregava um soro na veia, sustentado por uma acompanhante. A cena era bastante insólita, pois o habitual é que pacientes entrem nas UTIs transportados em macas. Atarefado, esqueci as duas mulheres. Não sei quanto tempo se passou até que escutei um canto solene, fugindo aos padrões sonoros de respiradores, torpedos de oxigênio e monitores cardíacos.
A paciente que eu vira chamando à porta cantava um hino religioso, com os olhos fechados e um braço erguido para cima. O canto ressoava tão alto que seria impossível não ouvi-lo em qualquer esconderijo da imensa UTI. Senti um abalo nos nervos e lembrei as carpideiras do sertão onde nasci, encomendando os mortos. Mas a mulher de pernas inchadas louvava Deus e proclamava a vida. Postara-se junto ao leito de uma outra paciente, que respirava com ajuda de aparelhos. Disseram-me que a cantora de voz poderosa passara cerca de um mês nessa mesma terapia intensiva, em coma profundo. Havia se recuperado e saíra de alta para uma enfermaria. A doente para quem ela cantava agora fora sua companheira de quarto. As duas, em tempos diferentes, travavam um combate igual. Mesmo sem estar totalmente salva, frágil e cansada, ela viera cantar junto ao leito da companheira. Acreditava poder ajudar, pois descera aos porões da morte e conhecia o caminho de retorno à vida.
A segunda paciente também se curou. Está viva, contando a história que escrevo para vocês. Acredito no poder da ciência e da medicina. Também acredito na força salvadora do canto e em energias misteriosas que homens e mulheres de fé podem mobilizar. O Natal possui essa magia. Soterrado pelo entulho do consumo, vez por outra é possível despertar sua música. Como a voz do Anjo da Ressurreição, ou a dessa mulher de pernas inchadas que vence a própria morte cantando. 

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