segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Natal 4 - Seu João e seu anão de estimação


Seu João e seu anão de estimação

Marçal Aquino (*) - O Estadao de S.Paulo
É na reforma da casa de L., 27, que Seu João e seu anão de estimação vão trabalhar neste final de ano. Seu João, pedreiro de mão-cheia, é um profissional muito requisitado. O anão posa de auxiliar, mas sua maior utilidade é entreter Seu João com suas histórias, enquanto uma parede sobe a prumo rigoroso ou ladrilhos se assentam num piso como se tivessem nascido ali.
Nem tente contratar um sem o outro. Não prospera.
O nome do anão é Nicodemos. Ele e Seu João se conhecem faz um tempão, desde que se encontraram no canteiro de obras de um shopping center - Seu João, na época, um jovem aprendiz; o anão, já com sua velha idade imprecisa, era o encarregado de distribuir água para a peãozada. Há alguns anos, os dois dividem uma casa modesta na Vila Anglo, onde levam vida de solteirões convictos, com menos luxos que manias. Os vizinhos demoraram um pouco para assimilar a dupla, e mais de um teceu aleivosias contra eles. Bobagem.
Seu João é um negro escuro de mãos ásperas e feições mansas, o cabelo cortado rente querendo ficar grisalho. A pele do anão tem uma cor indefinida. Cor de anão.
É L., 27, quem recolhe as informações sobre os dois e repassa para seu namorado, astrônomo e escritor diletante (mais interessado nas coisas que acontecem no céu do que naquilo que ocorre ao seu redor, na terra), na expectativa de que ele escreva uma fábula de final edificante, a tempo de participar do concurso de contos de Natal promovido pela universidade em que ambos trabalham. Há um bom prêmio em dinheiro para o vencedor - e L., 27, acredita que, depois da reforma, sua casa só fará sentido com a adição de dois ou três móveis novos. (Um detalhe, por ora secreto: o namorado planeja usar o prêmio para custear uma temporada em Antofagasta, no Chile, região que abriga o maior observatório estelar do mundo, o Paranal. Um lugar medonho, na orla do deserto do Atacama: 300 dias por ano sem a bênção de uma gota de chuva!)
Seu João nasceu num vilarejo árido no sertão de Minas, rapazola ainda partiu para tentar a sorte em São Paulo. Nicodemos ingressou na espécie humana num trailer de circo, em trânsito entre uma cidade e outra (nasceu com dois CEPs, como gosta de dizer); foi registrado no lugarejo natal de Seu João, daí a afinidade que surgiu de cara entre eles e converteu-se, com o tempo, numa amizade afetuosa e incondicional. Daquelas em que um cuida do outro com mais zelo do que de si mesmo.
Exemplo: noite dessas, na calçada de um bar da baixa Consolação, onde Seu João e Nicodemos compartilhavam uma cerveja, uns playboys que bebiam na mesa ao lado, sem nada mais para fazer de útil, encafifaram com o anão. A paciência de Seu João resistiu a cinco ou seis piadinhas (todas manjadas, por sinal), até que, de repente, ele se ergueu e desferiu um tapa violento na mesa de metal dos rapazes, entornando copos e derrubando garrafas no chão. O bar emudeceu; a impressão que ficou foi de que até o trânsito pesado da rua silenciou por um instante. Três dos playboys se desculparam no ato, sem graça. O quarto, o mais prejudicado pela cerveja derramada, se levantou e chegou a cerrar os punhos. Mas, num zás, a manopla cascuda de Seu João agarrou sua garganta e apertou até os olhos lacrimejarem num pedido engasgado de desculpas. Vexame adicional: enquanto o rapaz sufocava, sua bexiga não resistiu e tornou público que ele estava precisando ir ao banheiro com urgência.
Nesta época do ano, Nicodemos costumava defender uns trocados fazendo bico numa loja de brinquedos do Centro. Sua função era dançar vestido de Papai Noel em frente a uma caixa de som dois palmos mais alta, que emitia estridentes canções natalinas, e distribuir balas ao povo que passava diante da loja. Ele fazia um tremendo sucesso ali, arranjou até namorada com essa história. Mas teve de abandonar a ocupação, a pedido de Seu João, depois do que aconteceu em certa ocasião.
Foi assim: véspera de Natal, começo de noite, a loja já baixando as portas, um cliente ofereceu uma gorjeta graúda para o anão-noel fazer a entrega de um presente a uma criança num bairro distante. Uma criança deficiente, o cliente informou. Nicodemos aceitou a incumbência muito mais pela boa ação do que pelo dinheiro - não queria voltar tarde para casa, sabia que Seu João o esperava para a ceia. Só que deu tudo errado. O bairro era distante, não havia criança nenhuma, apenas uns marmanjos que se divertiram à custa do anão. Gente da pesada, que atirou para o alto à meia-noite. Nicodemos só foi liberado quando o dia de Natal clareou. Chegou em casa na hora do almoço, encontrou Seu João à beira de um colapso nervoso - já tinha feito uma romaria por delegacias e hospitais.
Por isso, neste final de ano, Nicodemos vai trabalhar com ele na reforma da casa de L., 27. Trabalhar é modo de dizer; na verdade, ele vai divertir o amigo com seus causos, um mais sem pé nem cabeça do que o outro.
O namorado-astrônomo transformou essa história num conto e o inscreveu no concurso da universidade. Não ganhou o prêmio. (Nunca ganharia, nem se fosse Tchekov ou Cheever ou Carver. Cartas marcadas: o concurso foi inventado para auxiliar um ex-professor, cassado pela ditadura, que batalha contra um câncer e a penúria econômica.) Como se os deuses fossem dados a estornos, porém, eis que o astrônomo foi convidado por uma revista científica americana a escrever um alentado artigo sobre novas galáxias, assunto que domina como ninguém. O valor do cachê, pago em dólar, é bem superior ao prêmio literário, só que ele ainda não tem certeza se viajará para espiar constelações no céu do Chile ou se comprará os móveis novos para a casa reformada de L., 27. Pela maneira como olha para ela, quando a tem em seus braços (milhares de estrelas em seus olhos!), eu me arriscaria a dizer que ele vai optar pelos móveis.

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