quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Natal 6 - Natal de peixes dourados


Natal de peixes dourados

Raimundo Carrero (*) - O Estadao de S.Paulo
Naquelas manhãs de verão, quando começavam a enfeitar as árvores, e às vezes chovia à noite, se não à tardinha, eles precisavam chegar ao rio antes que os peixes acordassem. Peixe dorme, Matheus? Acho que dorme, não é? Ninguém consegue viver só de olhos abertos. Peixe não é ninguém. E é o quê? Sei lá, você é que fica falando assim e todas as pessoas falam assim. Eles queriam peixinhos dourados para dar à mãe. De presente. E naquele dia. Era naquele dia em que os peixinhos dourados passavam pelas águas de Arcassanta uma vez por ano. Eles sabiam, somente eles sabiam. E sabiam mais, muito mais: a mãe ficaria encantada se tivesse no aquário um peixinho dourado. Mesmo que na casa não houvesse aquário. Compra um depois, não é? Compra? Quem compra?
Caminhavam pela estrada, uma faixa de chão sem plantas, terra avermelhada, raros espinhos e com muitas pedras pequenas, que eles só enfrentavam aos sábados e domingos, porque estavam descalços, distanciando-se da casa, aquela casa da mãe, com dois terraços, duas janelas e uma porta grande, suburbana; uma porta só, é verdade, mas uma porta grande. À frente da casa, é verdade, porque nas laterais havia mais duas. Menores. Distante da cidade, embora pudesse vê-la, de longe. E as luzes à noite eram tão fascinantes. Sobretudo quando piscavam, vermelhas e verdes, amarelas e azuis, às vezes acendendo e apagando, lá mais longe um trenó também feito só de luzes, parecendo sobrevoar as casas, os prédios e, ainda mais distante, as serras.
Agora não, agora não estavam descalços, usavam os sapatos da escola e reclamavam. Deviam chegar logo para a festa. Papai Noel existe? Não, Papai Noel, não, mas Cristo, sim. E que dia é hoje: de Papai Noel e de Cristo? Dos dois. Os sapatos machucam os dedos, mãe. Tem nada não, vai logo acostumando, ela ia dizendo e ajeitava as meias com o maior cuidado para não estragar as unhas pintadas de vermelho. Eu prefiro Papai Noel, que ele dá presentes, o outro vestia a calça no meio da sala, ajeitando as pernas, mexendo os joelhos. Cristo também dá presente, o problema é que a gente não vê. Então não vale. Vale, sim, vale. A mãe aproveitou para colocar perfume em cada um, embaixo das orelhas, na nuca, na sobrancelha. As meninas vão gostar, ela dizia, enquanto ele afivelava a calça de Sereno. E batom. A mãe usava um batom vermelho, igual às unhas, para a intensidade do sorriso.
Na primeira poça d"água, depois que dobraram a moita verde com mato molhado, espinhos e tudo, e de onde a mãe não podia vê-los, fizeram o combinado desde a noite anterior, no cochicho do quarto, desviaram o caminho, recolheram as minhocas que jogavam nos bolsos para inteiro desgosto da mulher. Vocês sujam a roupa de terra e de lama, por que, hein? Depois dá um trabalho imenso para tirar, ficava com os dedos ardendo de tanto sabão. Explicar mesmo, não explicavam, permaneciam só com aquela cara de simpatia magoada. Ela nem mesmo olhava para trás, esfregando a roupa no tanque. Agora, não, agora zelava pelas unhas e pelas mãos. E com uma espécie de cantiga na garganta.
Um tirou a camisa, corria. Matheus, ô Matheus, não entra calçado no rio. É mesmo, nem que eu fosse menor que você, não é, Sereno? E tira também as meias. E a camisa. Esse nome Sereno é que eu acho engraçado, fosse por mim, somente, ria sempre. Com respeito, viu, Sereno, mas com respeito. Deixa meu nome, ô, Matheus. Às vezes esqueciam até os livros e cadernos, tinham que voltar correndo para buscá-los. Friorentos, apressados, o coração batendo na garganta, mesmo com o sol. Acha os livros, vai, acha. Mas, enfim, encontravam, porque ali não passava quase ninguém. Havia as pessoas que passavam, raramente, muito raramente, e só por brincadeira essas pessoas escondiam os livros e os cadernos no mato. Mas, na hora de voltar, onde estavam? O quê? Os livros, os cadernos. Passavam tempos inteiros procurando, eu lhe disse que um dia ainda ia acontecer; vai, procura, procura, não precisa ficar pensando; era mais simples se a gente mesmo escondesse; não escondeu, agora procura, vai, procura.
De longe, Matheus podia ver o homem de barba acenando, a mão bem para o alto, distante, e ele, menino, só por brincadeira de menino, perguntando já vai, não é? E ouvia, embora uma voz que se misturava no vento e chegava aos ouvidos muito leve é, já vou, estou indo. Foi que um dia ele teve até vontade de dizer dê lembrança, e ficou calado, bastava o riso, esse riso brando nos lábios, até mesmo a mãe tinha esses lábios brandos, ainda um pouco marcados pelo batom, abraçada ao travesseiro, madrugada inteira, e ele tinha compaixão, porque a mãe precisava de companhia, isso precisava, com aqueles cabelos negros que se derramavam nos ombros, ele não ia dizer nada, nem mesmo ao irmão, que catava peixinhos dourados com minhocas, terra, areia e água, nem tanta água assim. Só fechava os olhos, só fechava os olhos mesmo quando descobria, naquela preguiça da madrugada, os seios da mãe saindo da blusa. A mãe merecia, tão bela, não era? Nunca reclamou, nunca ouviu a mãe reclamando, nem se lamentando nem chorando, nesse vale de lágrimas. O pai, quando teve um pai, chegava e dizia adeus e a mãe respondia adeus - estavam se despedindo antes de começar? O irmão devia nem perceber e ele, Matheus, dizia já vai, não é? O homem acenava. O homem, não; só uma forma de dizer - o rapaz, que vestia camisa comprida sem se importar com o calor. E sem chapéu. Ele nunca passava de chapéu.
Por que a gente vai dar presente de peixe dourado a ela? Porque peixe dourado é uma ave do céu, Sereno, e só a gente sabe onde pescar, peixe raro, ave rara, você agora entende, não entende? Entendo, mas você está mentindo, porque você mente demais, peixe não é ave. Você pergunta, não é? Por que você pergunta, aí eu minto. Não devia. Minto porque é melhor mentir do que não responder, entendeu? Tudo bem, entendi. Os dois tiravam as iscas dos bolsos, colocavam no anzol e passavam tempos inteiros esperando a presa, minutos seguidos, em silêncio, só os olhos avançando nas águas. Mornas, as águas, mal cobrindo os pés. Raros, os peixes, bem raros; e menos, muito menos, os dourados. Raros, não; tão raríssimos de não existir. Há, sim, Sereno; a gente não quer?, então há; quando você menos esperar eles chegam. Talvez não fosse naquela época. Naquele tempo. Ou naquele dia. Ou, quem sabe, não fosse nunca dia de pescar. Castigo de pescador é não ter peixe. Pensavam. Riam. E cada um a seu tempo; e cada um a seu modo; no seu instante. Os dois ali, juntos.
Daí que começou a esquentar, a esquentar, o sol reverberando nas águas e nas pedras. Ainda tiraram o lanche da bolsa, ralo bolo, apenas um pedaço de bolo para cada um, adquirido com dinheiro contado recolhido na feira, porque aquele não era dia de levar lanche para a escola, tudo ficava por conta da festa. Insistiram e insistiram. Até que chegou o sol posto, o sol das almas, hora, portanto, de voltar para casa. Somando os achados e perdidos tinham, ao todo, não mais que um punhado de piabas nos bolsos, dessas que mal suportam uma dentada. Voltaram. Como é que se diz? Olha aqui, mãe, peixinhos dourados para a senhora. Com certeza ela ia rir, bater palmas e pular. É a multiplicação dos peixes, meu filho? Peixe é na Semana Santa, não é, Sereno? Peixe sempre. Ensaiavam até as palavras da mãe. Era assim que talvez ela falasse, preparando a ceia de Natal, ainda tão pobre de não ter uma toalha para cobrir a mesa. Multiplicação de peixinhos dourados, mãe, era Matheus quem inventava.
Viram, os dois viram ao mesmo tempo, apesar das sombras que desciam: a pequena casa suburbana estava com todas as janelas e portas fechadas, no estranho começo da noite alumiosa, com luzes piscando, ainda que muito tímidas, na árvore. Papai Noel no telhado. E o silêncio, um imenso silêncio se espraiando nos confins. Entraram. Eles entraram quando perceberam que a porta estava somente encostada. Aquilo? A sala desarrumada, os móveis encostados nas paredes, restos de comida no chão, abertas duas ou três garrafas de sidra. Olhavam-se, olharam-se e avançaram pelo pequeno e estreito corredor. Não era difícil ver a cama pela fresta da porta aberta: os dois, deitados, a mãe com as unhas vermelhas, o sorriso largo, e o homem que acenava de longe, era ele mesmo, percebia, com a mão inteira sobre os seios dela, o segredo do peixinho dourado. 

Nenhum comentário: