sábado, 17 de dezembro de 2011

Natal 2


Lágrimas na cozinha em véspera de Natal

20 de dezembro de 2009 | 0h 00
Ana Miranda (*) - O Estadao de S.Paulo
Ela está lá na sala, prendendo as velas da árvore, quer lembrar o Natal da sua infância, fica com os olhos marejados... o pão de rabanada amanheceu, desde ontem tomando ar, espalhei umas migalhas na janela, os pombos não têm direito a comer melhor, no Natal? a faca de serra, a tábua de pão... dona Aninha quando chega o Natal fica assim, nessa melancolia, ela diz que Natal é todo mundo fingindo que não tem dor, eu já disse a dona Aninha, Dona Aninha, a tristeza é um veneno que a pessoa toma, e ela, Não sou mais criança... o que será que aconteceu no Natal quando ela era criança? será que o peru já está dourado? pobre do peru... o meu menino ainda não chegou, cordeirinho tosquiado, demora tanto! fazer o recheio... ralar as nozes, amêndoas, depois... o pão no leite... dona Aninha não guarda nada, ela dá os sapatos, as roupas, os móveis, os quadros, até as joias de família, onde está o leite? vou cobrir o leite, as moscas não têm o direito de tomar um leitinho no Natal? mas morrem, as bichinhas, deixei ontem aqui o leite, melhor ferver, não lavei ainda as cerejas... dona Aninha não guarda nada, chega com aquelas sacas de blusa, saia, sapato, vestido, e nem usa, fica dando, dando, dando, meu coração se aperta, eu falo, Dona Aninha para que comprar se a senhora não vai nem usar? ela não guarda nada, só guarda aquela lata de panetone cheia de enfeites de Natal da árvore da sua casa de criança, cada um enrolado num papel de seda, feito joia, tudo de um vidro tão fininho... e quebra nunca! leite moça... açúcar... canela... os ovos, preciso de seis, seis está bom, doze ovos são demais, não quero usar muitos para a dona Aninha não gastar à toa, seis, as fatias deste tamanho, assim, todas do mesmo tamanho, iguaizinhas, dona Aninha gosta de tudo bonito, bem feito, as rabanadas douradas, ah meu Deus e se não ficar dourado? tem aquele papai noelzinho de vidro bem fino, o violãozinho, a lamparina, pinhão, o anjo, os sinos, o que mais... as casinhas com chaminé... o Menino Jesus... árvore mais linda! alta! e os apliques feito grampo, uma flor de metal que a dona Aninha prende nos galhos do pinheiro e com as velinhas em pé, ela acende as velas antes da ceia, faz tudo sozinha... fica o dia todo na sala arrumando a árvore, depois passa os dias olhando a árvore, e chora, será que foi a babá dela? dona Aninha disse que perdeu a babá... ela amava a babá... por que o meu menino está demorando tanto? dona Aninha não guarda nada, mas guarda a coisa mais fácil de quebrar, e não quebra jamais, um vidro delicado, mais fino que cristal, uma pelezinha de vidro... outro pão, todo ano a mesma coisa, por que será que precisa fazer todo ano a mesma festa? será se o menino Jesus renasce todo ano? minha filha está aborrecida comigo, duas latas de leite moça, aqui no tabuleiro os ovos, cinco... seis... todo Natal é assim, minha filha diz que eu deixo de passar o Natal com ela e as crianças, para ficar trabalhando, cozinhando para gente estranha, mas dona Aninha não é gente estranha, tenho o meu menino, prefiro ficar aqui cozinhando, eu não gosto de cozinhar, desde os nove anos numa cozinha, sem gostar, foi minha mãe que me cravejou na cozinha, foi ela quem me botou na cozinha aos nove anos, tem setenta anos que eu vivo na cozinha, e ainda nem sei cozinhar, a dona Aninha gosta da minha comida, pelo menos diz que gosta, será se ela me engana? depois da festa ela fica em jejum dois dias, de náusea, branca... chora, chora, chora... não posso arredar os olhos dela... fiz uma poesia para o Natal, vem o frei aqui celebrar, é festa de alegria, de nascimento, as crianças cantam, ele distribui o pão e o vinho, não admite presente no Natal, diz, as pessoas esqueceram que o Natal é festa religiosa, só pode dar presente para criança, como deram ao Menino Jesus, ouro, incenso, mirra, dona Aninha esconde os presentes no quarto e quando o frei vai embora ela distribui, tanto presente! presente para minha filha, para meus netos, ela me deu um anel de ouro no Natal do ano passado, a minha filha queria vender o anel de ouro para comprar cimento e rebocar a nossa casa, eu não deixei... o frei gosta que eu escreva verso, ele manda ler, as crianças fazem coral, ah será se a Josefa engomou a toalha de renda? bem alva, aqui, ah, sim, as fatias de pão, e o óleo? a caçarola grande, no ano passado me queimei com o óleo... queria que viesse aquele cantor, e ele fizesse um samba da minha poesia, como é mesmo? Natal Menino Jesus é noite tarda de luz, a noite triste tão bela, e Deus na minha janela, sombrosa a estrela guia, Natal de toda Maria, Natal de... cada menino... esqueci... o Natal é para dona Aninha lembrar de uma saudade secreta, para pensar no seu destino... lembrar da mãe, do pai, do filho, de quem se foi... do perdido... nascer lembra morrer, ninguém sabe se é melhor sofrer, mas viver, ou se consolar na ingenuidade... as crianças estão ensaiando a lapinha, coisa mais linda, vou olhar da porta, à noite o papa vai rezar a missa na televisão... o frei fala, colar de palavras bonitas do Evangelho, ele tem amor aos pobres, para que foi que Deus quis fazer os pobres? será se foi para testar a porta do Paraíso? o frei diz, os ricos devem chorar e prantear, porque muitas misérias vão cair sobre eles, as suas riquezas estão apodrecidas, as suas vestes comidas de traça, o ouro e a prata dos ricos se enferrujaram e a ferrugem vai dar testemunho contra os ricos, e vai devorar a sua carne como fogo, será se prata enferruja? ouro não! Vede, o salário dos trabalhadores que ceifaram os vossos campos... dizem que o frei foi terrorista, mas ele é tão meigo... usa oito cebolas para o refogado, oito! o óleo está quente, deixa eu prestar atenção... hmmm, virar esta... esta... ficando boa... ceifar... a toalha de papel para escorrer, uma, duas, três, ferrugem, ninguém pode tocar naqueles enfeites de vidro, para não quebrar... escorrer... mudar o óleo, óleo novo é um desperdício, mas dona Aninha quer assim... será se ela amava mesmo a babá? o vestido vermelho dela, será se está bem engomado? amava a babá? vou olhar, ela fica tão linda neste vestido vermelho comprido até os pés, tão linda... amava? e os olhos marejando, marejando, marejando... 

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