domingo, 18 de dezembro de 2011

Natal 3


Waldick

20 de dezembro de 2009 | 0h 00
Manoela Sawitzki (*) - O Estadao de S.Paulo
e, principalmente, não ligar a televisão. No ponto em que chegou o mundo, minha filha, é até difícil escolher entre notícia boa e ruim. Porque ou é se prender a fiapo de esperança, pra logo se atinar que tudo não passa de enchimento de linguiça, que do jeito que essa cidade ferve nem o capeta aguenta, ou aceitar de vez que não tem saída pra lado nenhum. Como se diz hoje, tá tudo dominado, o mal tomou conta. Eu não. Vou é escutar o disco que o Armando tanto gostava. E olha que já não podia mais com aquele homem se esgoelando nos meus ouvidos todo santo sábado. Às vezes parece que fazia só pra me botar fogo nas ideias. Come uma rabanada, minha filha, come. Tão magra. O Armando parecia que queria me ver no destempero. Mulher braba, ele chamava assim sempre que me via passar pela sala encrespada com o tal do Waldick que ele tinha de ouvir todo bendito sábado depois do vinho do almoço. Só arriava o volume quando a viúva debaixo cutucava o teto com vontade. Nunca vi homem pra repetir o repetido que nem esse. Eia, mulher braba, venha cá, venha, me chamava bem assim o Armando, risonho, esticando o braço, já querendo safadeza. E eu respondia que tinha serviço na casa e passava reto. Cuida que queima os beiços, filha! Nunca me esqueci, minha falecida mãe, com ciência do afeto entre mim e meu noivo, me ensinou somente duas coisas na noite antes do casamento: que fizesse banho com velame do mato se ele chegasse com peste da rua, e que se não desse confiança pra homem encachaçado também nunca faltaria respeito em casa. Com o amor que vocês se têm, o resto todo se resolve, ela disse assim, me lembro como se fosse agora, prendendo uma cachopa de flor de laranjeira no alto da minha trança. Eu tinha um cabelo que caía pra baixo da cintura e o Armando reparava e ficava doente até se eu cortasse um nada nas pontas. Depois minha mãe nunca mais pronunciou palavra de intromissão na nossa vida. E a gente também foi pra estrada. E foi indo de um canto pra outro desse país, não que parava. Só calhou parar e ficar aqui mesmo. Pega mais dois ovos ali na frigidaire pra vó, pega? Então eu passava reto pelo Armando se ele fazia aquela cara endemoniada depois do terceiro copo. Cruzava já amolecida já, é fato. Mais moça, até que ia e me sentava no colo dele, mas bocadinho e cheia de vergonha. Nem olhar nos olhos podia que me desgovernava e acabava fazendo coisa que não se deve à luz da tarde, com criança acordada dentro de casa. Depois ia prestar contas na confissão. Obrigada, filha. Não que fosse beata, somente me aliviava e era bom. Purgava o ocorrido, tomava a comunhão e voltava chispando, com umas saudades sem cabimento do Armando. Que a gente nunca passou mais que um turno afastados depois das bodas. E na missa, teu avô não ia nem arrastado. Só pisou em igreja no dia do nosso casamento. Depois, com muita má vontade, nos batizados dos filhos. E ainda jurava que, nas três vezes, botou a mão no bolso da calça e fez figa pro padre. Desconjuro! E tua mãe, será que chega na hora? A Zilda não quis se casar em religião nenhuma, e por mais que lhe rogasse, nem te batizar aceitou. Pobrezinha da minha neta. Puxou ao pai, a Zilda. E ainda foi se juntar com o marido no comunismo. Deus me livre eu abrir a boca pra falar de Cristo no meio da ceia com aqueles dois. Natal, pro Armando, era comilança, beberagem e motivo pra festa com a família. Mais não lhe pedisse. Mais canela, filha? O Zé Luiz, teu tio, coitado, nunca teve boca pra nada, só ouvia e comia. Ou nem ouvia, né? Mas o Armando e a Zildinha... Eu preferia enfeitar meu presépio, pedir perdão pela heresia dos dois, orar quieta no quartinho, do que entrar naquela celeuma sem cabimento. Pois tem cabimento dizer que Jesus tinha coisa com a Madalena?! O Espírito Santo que nos proteja, amém. Nunca fui de falar demasiado. Nem nunca fui notória em nada, não, diferente de vocês, mocinhas de hoje, que já nascem pra ganhar o mundo. Quem veio munido com o dom do discurso, falava garboso, era ele. O Armando. Nem gostei dele no começo, quando a gente se conheceu naquela quermesse da paróquia de Palmeirina. Mas o diabo do homem falou tanto, mas tanto... Aquele vendia até água benta pro anticristo! Só vou aprontar aqui a farofa e te levo pra ver o menino Jesus, tá, filha? A vó comprou mais seis ovelhinhas pro rebanho esse ano, que duas a rapariga que ajuda na faxina espatifou ano passado. Na cozinha eu me distraio e me destaco até. Agora menos, que o Armando não tá mais pra pedir a feijoada dele. Seis meses já, sem o Armando. E os filhos vejo tão pouco. E só querem ir pra restaurante. Vou pra não fazer desfeita, mas sinto falta do meu tempero. Feijoada, o Armando pedia completa até um dia antes de ir. Aí ficava rondando o fogão, dando palpite, bulindo nas panelas, e achava jeito de me bulir também até que eu enxotasse com coça de pano. E saía se rindo todo, o danado. Tem dias que parece que escuto a risada dele. Ah, às vezes me arrependo tanto do tempo que ficava na frente da televisão vendo novela. Mais horas que a gente podia ter ficado juntos, né? Assunto nunca faltou, e às vezes era bom só ficar assim, encostados na poltrona grande, se balançando, olhando pra fora, a ver coisa nenhuma. Uma paz que nem sei. A gente se distrai da vida se é feliz, e acha que a felicidade nunca acaba, menina. Queria era ter espremido mais a fruta. Eia que essa vida é curta! Você é que não sabe. Tá achando triste o Waldick? É triste mesmo. Por isso não me agradava que ele escutasse, porque a gente vivia só alegria aqui nessa casa e me doía imaginar aqueles dizeres do Waldick na boca do Armando. Venha cá, venha ver com a avó se o peru já botou o tal do prego pra fora. Era sempre ele que cuidava do peru da ceia, de modo que nunca aprendi. Mas não desses que a tua mãe trouxe, todo esturricado, com prego dentro pra avisar do assamento. Criava o bicho quase o ano inteiro, no terreno de um compadre. Aí sempre pegava afeição e se negava a comer da carne na noite de Natal. Homem de coração assim, nunca conheci outro. Não tem namorado ainda não, tem? É nova, a cabritinha. Pois aproveite. Eu, na minha vida, só tive o Armando só. Mas tive foi muito. E digo, minha filha, ainda me faltou vida pra amar o tanto que podia, o safado do teu avô. Arre! tem vezes, assim, no calor do bafo das panelas, que parece que posso ouvir ele gritar ali da sala. Eia mulher braba, venha cá, venha, 

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